BEM VINDOS

Somos um grupo de RPG que está jogando uma campanha há 11 anos, o sistema de regras que uso é de criação minha e devido ao gênero de jogo a batizei de HORROR. Em todo esse tempo dentro do jogo aconteceram muitas coisas que gostaríamos de imortalizar e a melhor maneira que encontramos para fazer isso foi tranformar o jogo em uma história dinâmica. A história que começa nesse espaço é o inicio do quarto ano que começamos em 2007, a cada sessão de jogo transcrevemos todo o acontecido em forma de história para gravarmos em nossas memórias a angustia vivida pelas almas de cada um e compartilharmos com aqueles que apreciam o gênero. Ao lado direito da página na seção "cada dia uma angústia" a história começa no dia 23/09/2005.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

ADOLESCENCIA DE PETER













Recordo-me quando a primeira carta chegou em 1997. Eu tinha dezesseis anos, jamais havia recebido uma carta na vida. Na verdade, nem se podia dizer que aquilo ali era uma carta, pois a mensagem não tinha remetente e era assinada simplesmente por “um amigo”. Vinha dentro de um envelope pardo, a escrita era toda a lápis num papel não muito bom (chegava a ter um tom amarelado). Pelo conteúdo, se percebia que o autor da mensagem possivelmente conhecia minha pequena família.

Na época, vivia eu e minha mãe numa velha e espaçosa casa no subúrbio de Billings, herança de meu avô. Nos fundos do quintal havia uma árvore bem descrita na carta do nosso estranho autor. Ele falava coisas sobre minha mãe, perguntou até se ela ainda fumava e se ela ainda guardava um diário de capa verde, demonstrando um grande interesse. No texto ele também perguntava o que eu sabia sobre meu pai e sobre seu passado. Concluía o texto pedindo para eu responder colocando uma carta na arvore do quintal e que não comentasse nada com ninguém. Lembro que fiquei extremamente confuso com aquilo tudo! Quem era esse homem?

A princípio respondi ao desconhecido dizendo que sabia pouco sobre meu pai, pois minha mãe sempre evitou o assunto. Eu só conhecia seu nome, Gaspar, e que tinha desaparecido enquanto minha mãe estava grávida e até em razão disso me batizaram como Peter Gramsci, usando o sobrenome materno. Também falei que meu pai tem um irmão, visto só uma vez pela minha mãe quando eu nasci. Relatei que ela ainda fumava muito e que eu nunca vi tal diário verde. No fim fiz algumas perguntas básicas: Quem é você? Por que escrevia para mim? Onde moras? O que você faz?

Coloquei minha resposta na árvore como combinado. Nos primeiros dias eu até ficava cuidando para descobrir quem pegaria a mensagem na árvore. Porém, depois de uma semana ninguém passou para buscá-la, fazendo com que eu esquecesse de observar. Contudo, um dia de manhã acordo e percebo que haviam levado a minha carta durante a noite e um mês depois recebo uma resposta que começava assim:

“Olá Peter! Vejo que você é muito curioso, ficou cuidando a árvore durante noites inteiras. Bem, sinto em lhe informar que não sou eu quem busca a carta, e sim, um conhecido meu muito cauteloso. Tu me perguntaste onde moro e o que faço. Pois então, moro muito longe de Montana. Mas, tenho certeza que um dia iremos nos encontrar. Eu sou escritor. E você Peter, o que gostas de fazer?”.

“Sei que é chato falar com alguém que sabe tanto sobre nossa vida e não revela o próprio nome. Vou tentar ser franco contigo: se eu pudesse me identificar, já teria feito isso na primeira carta. Acontece que precisamos conversar, só que se nossa conversa parar em mãos erradas teremos problemas...”.

Ele seguia a carta falando sobre o que é real e sobre o significado dos sonhos. Como tradicionalmente fazia, terminou a carta com varias perguntas:

“... de fato, não podemos dizer nada sobre a realidade, pois ela mesma é uma incerteza. Seria a realidade algo real? Não poderia ser tudo um sonho e que estamos prestes a nos acordar? A verdade, Peter, é que algumas pessoas têm o estranho dom de ter sonhos mais reais que a própria realidade. Sonhar dessa maneira é tão encantador quanto perigoso, porque ninguém mantém o controle da própria mente, ninguém mantém o controle da realidade. Cuidado com as pessoas que sonham de olhos abertos. E você Peter, já teve sonhos assim?”.

“Ass: UM AMIGO”

O mais estranho era a seguinte mensagem deixada no verso da carta:

Tente procurá-lo no sótão, lá estão elementos que não podem ser esquecidos”.

Que “elementos” seriam esses?

Aquelas cartas mexiam com a minha curiosidade. Porém, ela estava ficando cada vez mais sem propósito. Sonhos e realidade, que assunto inconveniente. Além de tudo, parece que o estranho autor conhece o imenso sótão lá de casa. O sótão era cheio de coisas velhas e quinquilharias que meu avô depositou até sua morte em 1986. Seria péssimo ter que escalar até lá para tentar achar algo que, segundo o estranho dizia: “não poderia ser esquecido”. Aquele sótão era velho mesmo... acho que vale a pena descrever a casa onde fui criado:

Uma velha e grande casa de madeira típica da década de 40. Ela tinha um jardim meio mal cuidado com a grama sempre por cortar. Nos fundos havia uma pequena horta que minha mãe dedicava boa parte de seu tempo cuidando. O limite do nosso terreno era marcado por um imenso carvalho (onde deixava as cartas) e um cercado de tabuas. As janelas estavam sempre fechadas, sendo o interior da residência bem escuro. A sala possuía um tapete vermelho e um quadro de meus avós. Há também um retrato em cima da lareira de minha mãe com 45 anos me segurando no colo ainda bebê. Mas o que mais chamava a atenção era o piano no canto. Existiam cinzeiros espalhados por toda a habitação. No andar superior ficava o quarto da minha mãe, que estava sempre trancado. Do quarto tinha-se acesso ao sótão que eu fui poucas vezes na minha vida. Ele era um lugar no mínimo estranho. Lá ficavam empilhados moveis velhos cobertos de poeira. Um armário guardava as roupas do meu avô, inclusive seu uniforme da marinha e um revolver antigo que eu nuca toquei. Havia também uma estante com livros em italiano e cadernos antigos. No sótão se escutava barulhos de ratos e sons de madeira velha estalando que combinados com a baixa luminosidade dava medo em qualquer um.

Como o quarto da mãe ficava trancado, o único jeito de entrar no sótão era escalando pelo lado de fora e abrindo uma pequena janela. E foi o que eu fiz. Logo que entrei, procurei por todo sótão por alguma coisa que nem eu mesmo sabia o que era e não achei nada. Quando já ia embora, notei uma caixa encima da estante e nela achei um grosso diário de capa verde. Dirigi-me à luz da pequena janela para ler suas paginas. Surpreendentemente, estava tudo escrito em italiano e eu não compreendi uma linha. A caligrafia parecia ser a mesma de minha mãe. Ela aprendeu a falar tal língua com seus pais e astutamente escreveu o diário todo em italiano para evitar a leitura de curiosos como eu e meu amigo escritor desconhecido. Devolvi o diário e o deixei da mesma forma que estava antes.

Já no outro dia respondi ao estranho correspondente com o seguinte texto:

Caro amigo desconhecido, Ontem, vasculhando o sótão, achei o tal diário verde. Infelizmente estava tudo em italiano, língua que eu não domino. Além disso, eu não posso tirá-lo do local, pois acho que minha mãe notaria sua falta.

Você é escritor? Que interessante! Eu pretendo fazer Economia ou História, também gosto muito de tirar fotos e nadar. Sobre os sonhos, eu nunca sonhei com algo real. Mas algo muito corriqueiro comigo é ver uma coisa e depois eu lembrar já ter sonhado com aquilo alguma vez (um dejavú) abraços

Peter Gramsci

em algumas semanas eu receberia uma surpreendente resposta. No envelope veio escrito “Peter, você gosta de fotografias? Aqui vai uma foto minha”. E no interior do envelope havia uma foto de meu pai com minha mãe! Aquilo era um choque. Junto vinha a carta:

"Olá Peter!”.

“Que bom que encontraste o diário. Mas preste atenção, por favor, não leia ele! Será melhor para você! Eu só queria saber se o diário ainda está aí. Óbvio que eu sabia que você tentaria ler, por isso nem te avisei que estava em italiano. Esse diário diz muitas coisas sobre tua mãe e eu. Por enquanto nós não podemos explicar, mas no futuro tu entenderás tudo. Talvez tua mãe nunca tenha falado nesse assunto com você, mas acho que ela só está esperando o monto certo. Até porque teus sonhos parecem ser bem limpos, isso é um bom sinal. Espero que tu tenhas sucesso no teu curso de Economia ou História”.

"Abraços, Gaspar”.

O que dizer daquilo tudo! O escritor anônimo era o meu pai desaparecido. Por dias eu não conseguia me concentrar em nada! Aquelas cartas beiravam ao absurdo. Uma coisa era certa, minha mãe escondia algo em seu passado.

Uma mulher séria, que se vestia como uma viúva, essa era minha mãe. Ela já tinha mais de cinqüenta anos com o péssimo habito de fumar muito. No entanto, posso dizer que aquela era melhor mãe que eu podia ter tido. Ela sustentava a casa com o trabalho na secretaria do hospital municipal além da pensão deixada pelo meu avô que serviu na marinha. Não sei o que poderia ter acontecido no seu passado que a deixou tão fria, mas o diário sabe.

Assim, continuei trocando correspondências com Gaspar por mais quatro anos. Ele provavelmente deveria já ter mais de sessenta anos e me sentia estranho naquela situação, falar com meu velho pai desconhecido por de cartas na árvore. Ele manteve durante todo tempo o seu mesmo estilo enigmático. Soube que ele estudou ocultismo durante boa parte de sua vida, mas agora estava focado na física. Seus livros eram restritos a um pequeno grupo da comunidade acadêmica que lia seus trabalhos. Com o tempo, passei a guardar as nossas correspondências dentro de uma caixa no meu quarto.

Em 1998 optei por fazer história, influenciado pela minha mãe, que dizia que eu deveria fazer aquilo que gostasse. E sempre gostei de história. Durante o curso acabei conseguindo um estágio no Museu Americano, onde trabalhava com artefatos de índios nativos norte-americanos. No ano de 2002 eu concluí o curso e comecei a participar do programa de exposições interestaduais do museu. O museu promovia exposições em diferentes cidades dos Estados Unidos e, a primeira cidade que visitei foi Boston. Foi a primeira vez que vi o mar.

No terceiro dia em Boston recebo inesperadamente uma ligação no meu celular, uma voz masculina fala “me encontre na Washington Street número 433” e logo desliga. Estava claro que provavelmente era Gaspar marcando um encontro. Cheguei no local combinado, era uma praça movimentada, percebo um senhor de boné e óculos escuros, era Gaspar. Ele me convida para almoçar num restaurante ali perto. Perguntei porque não se identificou pelo telefone e ele respondeu que a conversa poderia estar sendo escutada por alguém. Ele parecia tenso, estava sempre atento a qualquer coisa. Conversamos muito e apressadamente. Ficamos uns 30 minutos no restaurante. Achei extremamente estranha aquela atitude dele, pois era a primeira vez que ele via o próprio filho e mesmo assim fazia questão de sair o quanto antes do local. Isso me fez crer que Gaspar possuía algum transtorno mental.

Perguntei a ele quem que entregava as cartas na árvore, e ele disse que era um homem chamado Arthur, seu meio-irmão, logo, posso dizer que era meu “meio-tio” também. Mas Arthur havia viajado para o sul faz um ano e que por isso as correspondências pararam, mas a residência de Arthur fica em Montana. Gaspar terminou dizendo que nos falaríamos outras vezes com mais calma e que ele me procuraria na hora certa.

Durante aquela conversa, notei que Gaspar deveria ter morado durante sua juventude em Montana. Uma dúvida me veio naquele instante: “Se Gaspar é louco, porque Arthur colaboraria com o transtorno do irmão?”. E assim foi minha passagem por Boston em 2002, aos 20 anos de idade eu conheci o mar e meu pai.

Naquele ano ainda fiz outras viagens pelo museu, mas no mês de agosto eu tive que voltar às pressas para Billings devido ao péssimo estado de saúde de minha mãe. Ela teve uma infecção nos pulmões. Ainda resistiu por mais três meses. Seu último pedido foi o que mais me surpreendeu. Ela pediu para ser enterrada junto com um diário que estava guardado no sótão de casa. E foi o que fiz. Aquele diário verde em italiano a acompanhou em seu túmulo.

Minha mãe foi muito esperta, ela sabia que eu conhecia o diário e sabia que mais cedo ou mais tarde eu acabaria lendo. Para evitar isso ela levou o diário consigo mesmo depois da morte. Eu sempre quis entender minha mãe e sempre quis entender aquele diário. Agora estaria eu sozinho habitando a nossa casa.

Um tempo depois ocorreu algo estranho. Estava eu no Museu Americano observando o conjunto de fotos da cidade. No museu estão guardadas diversas fotos tiradas na cidade desde 1938 até os dias de hoje. De repente encontro uma foto tirada no ano de 1982. Era de uma rua no centro da cidade com vários pedestres parados na calçada esperando a sinal abrir e entre eles estava minha mãe grávida! O que mais me chamou a atenção era algo parecido com uma sombra ou mancha logo atrás dela. Fiquei muito impressionado com aquilo e resolvi furtar a foto do museu. Sempre levo essa foto comigo.

No ano de 2004 eu retornei paraBoston onde me encontrei novamente com Gaspar. Estávamos falando sobre muitas coisas quando eu comentei que o último pedido de minha mãe foi ser enterrado com o diário. Ele ficou apavorado ao saber que eu tinha feito o pedido dela. “Eles podem ter visto o diário! Eles vão querer o diário! Você devia tê-lo deixado escondido como eu falei” Exclamava ele. Não conseguimos continuar a conversa. Ele ficou completamente fora de si e foi embora. Retornei para Billings no fim da tarde do mesmo dia. Ao chegar, a polícia logo me chamou pra ir a delegacia. Lá fui informado que na noite passada alguém invadiu o cemitério e violou a sepultura da minha mãe. O corpo não havia sido retirado e a policia acreditava que o criminoso deveria estar procurando outra pessoa. Eu, mesmo abalado com aquela barbárie, me dirigi ao cemitério e constatei que o diário tinha sumido. Esta foi a pior noite de minha vida. A partir daquele acontecimento, minha vida tem se tornado um transtorno. Sinto movimentações entorno da casa durante a noite. Há poucos meses escutei passos dentro do sótão. Chamei a polícia e depois fui verificar o que havia lá dentro, mas não achei nada. Ao retornar, notei um barulho no quarto, quando abri a porta só achei a janela aberta e a caixa onde estavam as cartas de Gaspar vazia. Alguns dias depois recebi uma ligação, era Arthur, meu tio, informando que Gaspar havia morrido.

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