BEM VINDOS

Somos um grupo de RPG que está jogando uma campanha há 11 anos, o sistema de regras que uso é de criação minha e devido ao gênero de jogo a batizei de HORROR. Em todo esse tempo dentro do jogo aconteceram muitas coisas que gostaríamos de imortalizar e a melhor maneira que encontramos para fazer isso foi tranformar o jogo em uma história dinâmica. A história que começa nesse espaço é o inicio do quarto ano que começamos em 2007, a cada sessão de jogo transcrevemos todo o acontecido em forma de história para gravarmos em nossas memórias a angustia vivida pelas almas de cada um e compartilharmos com aqueles que apreciam o gênero. Ao lado direito da página na seção "cada dia uma angústia" a história começa no dia 23/09/2005.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

2022

DIA 1 DE NOVEMBRO DE 2022

Haviam se passado dezesseis anos desde o dia quatro de Junho. Muitas histórias se perderam no decorrer do caminho. Muitas por não ter uma folha para escrever, outras por simplesmente não lembrar. Finalmente consegui um velho caderno rabiscado, mas até isso é um luxo atualmente. As coisas então bem diferentes agora. Muitas pessoas sobreviveram ao ataque nuclear, mas foram morrendo por não conseguir resistir ao mundo contaminado pela radiação. Aquelas com muita sorte sobreviveram com poucas seqüelas. A grande maioria ficou deformada ou acumulando Doenças e problemas mentais. Nossa realidade atual não era para fracos, mas nós estávamos vivos.

Nossa casa atual era em algum lugar dos antigos túneis do metrô, na ilha de Manhattan. Formamos a toca com varias chapas de metal, transformando aquela parte dos trilhos em uma clareira escavada no concreto. Uma grande mesa improvisada ficava no centro do círculo para reuniões e as refeições. As placas de metal formavam pequenos quartos para as pessoas, os depósitos de comida e quinquilharias. Catar lixo se tornara uma necessidade, pois não havia mais o dinheiro. Permuta simples era o grande negócio agora. Tudo o que restava, uma folha de papel, uma aspirina, um pacote de salgadinho vencido e até mesmo metal pouco enferrujado tinha o seu valor. A rede de mendigos ainda estava conosco, éramos cerca de trinta pessoas dividindo aquele espaço. Tínhamos visto muita gente morrer, como Noah que morreu dormindo... Ele teve sorte.

Mas nem tudo é boa notícia. Todos estavam muito afetados pela dura realidade. Eu estava milagrosamente bem. Apesar da sujeira e do peso sobre os ombros eu aparentar ter um pouco mais que os meus trinta e cinco anos de idade. Não fiquei com nenhuma doença ou deformação por radiação. Samuel pegou algumas doenças problemáticas e Victor volta e meia apagava para acordar em seguida... Um tipo de distúrbio do sono. Fora algumas doenças típicas da velhice, afinal eles eram cinqüentões em uma era de privações. A menina Tamara, agora uma mulher, Estava bem como eu. Gabriela, no entanto não teve a mesma sorte. Ela contraiu um câncer que aos poucos estava matando ela. Há muito ela estava La deitada em estado catatônico apenas esperando a morte chegar. Samuel está lá provavelmente, em sua eterna vigília pela mulher que amava. Eu há muito tempo aprendi a esconder meus sentimentos e me resignar a deixar as coisas correrem.

Victor estaria provavelmente junto com Tamara na vigilância da única saída de nosso lar, junto com outros mendigos armados, talvez cuidando de nossas poucas armas de fogo e não havia muitas. Eu digo que Victor tirou a sorte grande ao encontrar Tamara. Ela via tudo em sua figura. Pai, irmão, protetor... Amante? Nunca perguntei. Não seria educado e não era da minha conta. Se pudessem ser felizes, era o que importava.

Eu estava junto com outras cinco pessoas em torno de nosso único rádio, tentando captar alguma notícia. Era muito aleatório o resultado, com a grande maioria do tempo em estática e poucas palavras. Vendo que não seriam muito produtivos os chiados de hoje, me levanto e vou atender a minha mais ilustre paciente.


Desde o primeiro apocalipse, percebi que certos talentos seriam indispensáveis para a sobrevivência. Dediquei uma boa parte do meu tempo em treinamentos com Samuel e a esgrima, livros sobre Ocultismo, cuidar de Esperança... Mas principalmente me dediquei à área de saúde. Não era uma médica, nem pretendia ser uma, mas esse conhecimento me tornou uma das poucas pessoas com esta habilidade em toda a Nova York. Na rede, eu era a única. A maioria dos problemas de saúde que aparecia era eu que cuidava na medida do possível. E sempre era um grande problema, pois remédios estavam entre as maiores raridades naquele mundo apocalíptico. Uma simples gripe podia matar e nem sempre havia remédios. Muitas vezes tive que escolher a vida ou a morte de pessoas e não desejo isso para ninguém. Eu sempre escolhi a vida, embora isso sempre nos deixasse com problemas. Mas esta paciente ilustre era a mais difícil de todas, em vários sentidos.

Fiz-me anunciar e entrei no quarto de Gabriela. Como imaginava, Samuel estava La ao seu lado. Ela estava em um estado lamentável. Em nada lembrava a mulher forte e decidida de antes. Estava muito magra, olhar vazio e a velhice tinha chegado mais cedo. Ainda assim era uma mulher forte. Lutava para viver e eu fazia o que podia. Os remédios que tínhamos para o caso dela estavam no fim. Não comentei isso. Tratei-a com todo o carinho que era devido a ela. Eu tinha quase certeza que ela podia nos ouvir, embora raramente respondesse.

Eu olhava para Samuel e quase podia tocar a tristeza que emanava dele. Queria dizer algo, mas todos os consolos seriam inúteis ou já foram ditos. Queria abraçá-lo, mostrar a ele que ainda havia esperança, mas a simples presença de Gabriela me impedia. Eu estava prestes a dizer algo que não devia quando fui salva pelo gongo... Um Homem que parecia estar bastante alarmado estava me procurando. Eu já sabia o que isso significava. O homem era Jack, um dos nossos sobreviventes.

- Laura, a pequena Vitória...

Vitória era uma das filhas do apocalipse, nascida após toda essa desgraça a nossa volta. Era impressionante ver que a vida continuava... Que as pessoas continuavam tentando mesmo não tendo a menor condição da vida se perpetuar... As pessoas continuavam tentando. Eu fico muito feliz por isso. É a prova de que a humanidade ainda esta lutando. A pobre menina tinha apenas seis anos e eu suspeitava que ela sofresse de Leucemia. Exigia um cuidado constante e deixei avisado que não hesitassem em me chamar caso houvesse algum problema. Pegando as minhas coisas, caminhei rapidamente ao local. Sara estava junto com o pai na sua eterna vigília pela saúde da menina deitada em um colchão velho. Não sei o que era mais difícil... O exame feito em condições precárias ou os olhares de esperança dos pais dirigidos a mim.

*****

Este é um fato que Laura nunca soube. É difícil saber como ela iria reagir. Talvez muita coisa mudasse. Mas ainda assim não foi fácil para os envolvidos. Uma velha questão se apresentará para vocês, meus caros leitores. Se for certo ou errado, deixarei que vocês mesmo julguem. Tenho certeza que existirão muitas opiniões divergentes, uns apoiando e outros condenando o ato.

Logo que Laura saiu, Samuel se reaproximou de Gabriela, sentando ao lado de sua cama como fizera muitas outras vezes. Passou a mão pelo seu cabelo, como muitas outras vezes. Beijou carinhosamente sua testa, como muitas outras vezes. Gabriela estava tentando dizer alguma coisa... Isso não acontecia sempre. Samuel aproximou seu ouvido dos lábios de Gabriela, que fazia um esforço sobre humano para dizer aquela simples frase...

- Eu te amo...

Aquilo era tudo o que Samuel não precisava ouvir.


Pensamentos sombrios passavam pela cabeça de Samuel. Ele via o potinho transparente alaranjado na pequena mesa improvisada ao lado da cama. Havia apenas mais um comprimido. Depois disso, sabe-se lá onde e quando encontrar outro pote destes, que tanto tinha custado a todos os membros da Rede. Samuel se entregou ao desespero e começou a chorar. Imaginem o que deve ter passado pela cabeça dele senhoras e senhores! Pensem e reflitam por um momento... O que vocês fariam em uma situação destas?

Após um bom tempo chorando, Samuel parecia ter chegado a uma decisão. Fechou a cortina que servia como porta e novamente se aproximou de Gabriela.

- Você sabe que nunca mais a gente vai se encontrar...

Era possível ver o pavor nos olhos de Gabriela. “O que ele quer dizer com isso?”

- Para onde eu vou com certeza você não vai... Eu sinto muito...

Gabriela fechava os olhos, tentava falar algo

Samuel se aproxima lentamente da cama e separa um dos travesseiros. As lagrimas vertiam soltas dos olhos de Samuel. Seu lamento podia ser ouvido nas proximidades, mas ele desejava que suas súplicas chegassem aos céus.

*****

Infelizmente não era possível fazer muito mais. Administrei o remédio à pequena vitória e realizai todos os exames possíveis. É uma época de incertezas, principalmente no que se diz a respeito de qualidade de vida. Os pais teriam que ter fé, acreditar na melhora da filha. A Única coisa que poderiam fazer.

- Ela vai ficar boa?

- Espero que sim. O remédio esta demorando um pouco para fazer efeito, mas isso é normal. Qualquer mudança ou problema vocês sabem onde me encontrar.

Cumprimentei os pais e saí. Não agüentava mais o olhar suplicante daquela mãe, como se eu pudesse fazer um milagre. Respirei fundo enquanto voltava ao quarto de Gabriela. A cortina estava fechada, o que era um sinal para não perturbar um momento pessoal do casal. Em parte por preocupação e em parte por curiosidade, puxei levemente a cortina para ver se estava tudo bem. Samuel estava com a face típica de alguém que acabou de chorar... E muito. Simplesmente abro a cortina toda para encarar Samuel. Gabriela estava inconsciente e parecia dormir... Eu sempre me preocupava. Tinha medo de que ela não iria mais acordar.

Cheguei ao lado de Samuel e toquei o seu ombro em sinal de apoio. Ao olhar nos meus olhos, ele ainda estava chorando.

- Obrigado Laura. Obrigado por tudo.

- Não precisa me agradecer por nada Samuel.

Eu estava terminado de ajeitá-la quando ele pegou delicadamente a minha mão. Um toque suave, como eu jamais havia sentido da parte dele. Ele olhou nos meus olhos e me desarmou por completo.

O que dizer a um homem que você ama sobre a mulher amada por ele?

- Eu... Vou... Vou procurar as garotas...

Saí do quarto e assim que passei a cortina, parei onde estava. Que coisa idiota para se dizer! Ele provavelmente esperava mais e novamente não consegui dizer o que sinto ou consolar como uma amiga deveria fazer. Então porque aquelas palavras e gestos me pareceram tão horríveis? Porque fiquei com aquele mau pressentimento? Uma lagrima teimosa escapou e a sequei rapidamente. Ainda pude ouvi-lo antes de seguir andando.

- Eu também te amo...

*****

- Você irá para um lugar melhor.

“Faça valer o meu sacrifício...”

Samuel rezava em pensamento, tentando justificar o ato que estava para realizar. Ele pensava que seria o melhor para ela. Com aquele mesmo travesseiro que tinha separado se aproximou de Gabriela. Milhões de pensamentos e sentimentos contraditórios atingiam Samuel quando ele começou a pressionar o travesseiro contra o rosto de Gabriela. Ela lutou, reagiu, não desejava morrer, mas não havia muito que uma moribunda pudesse fazer. Ele fechou seus olhos com força, não queria ver seu próprio ato hediondo. Logo Gabriela não lutava mais. Estava morta. Não acham isso irônico? Matou a mulher amada em nome do amor! Mas será que isso valeu à pena? Não teria Samuel se equivocado? Será mesmo que o destino de Gabriela era morrer? E será que a alma dela realmente foi para um lugar melhor? Eu disse que seria polêmico... O que você meu caro leitor, acha disso? Não há uma resposta correta para uma situação como esta

Este foi o primeiro passo daqueles três, rumo à solidão... O destino será cruel com eles. Desafiaram anjos e demônios, desafiaram monstros, desafiaram a realidade... E pagarão o preço por sua audácia. A bonança pode até vir, mas a tempestade nunca foi tão destrutiva e a paz para suas almas nunca esteve tão longe.

*****

Eu estava procurando alguma coisa para fazer e esquecer a situação no quarto. Verificava o kit de primeiros socorros com pesar, comprovando que as medicações estavam novamente no fim. Eu estava na entrada junto com Victor e Tamara.

- Os remédios estão acabando de novo.

- Pois é... E agora?

- E agora, o de sempre Victor.

Existiam apenas duas formas de buscar as nossas necessidades. Se não havia pressa, Procurava-se a esmo em locais abandonados ou montes de entulhos. Se havia pressa, Tentava-se negociar em uma comunidade. Naquele momento era noite e nenhum ser humano em sã consciência se aventura a noite... As criaturas estavam sempre à espreita. O que as mantinha afastadas de nossa pequena rede é o fogo e as luzes sempre acesas durante a noite. Nunca tivemos problemas com essas criaturas aqui. Teríamos que esperar até o dia seguinte, mas pelo menos poderíamos organizar nossa expedição com relativa tranqüilidade.

Nós moramos relativamente bem. A rede se situava no subsolo do metrô ao sul da ilha de Manhattan. Podíamos até mesmo ver os restos da estatua da liberdade ao longe. Havia três grandes comunidades próximas, sendo que a mais próxima era cerca de trinta minutos andando.


Eram comuns conflitos armados entre as comunidades em busca de supremacia e mantimentos. Outro golpe de sorte nosso, pois eram comunidades relativamente pacíficas. Politicagem e troca de favores que sempre existiram ainda estão presentes. Mas eram locais onde podíamos ir e negociar os mais diversos itens e quinquilharias sem precisar dar tiros ou espadadas. Era necessário ver o que levar e os que iriam à próxima expedição, então me levantei e perguntei onde estava Esperança. Victor tinha visto ela na cozinha. Neste momento olhava para o quarto de Gabriela ainda sentindo um peso no peito.

- Eu acho que a Gabriela... Não passará de hoje.

- É eu já esperava que isso acontecesse.

- Bom, fica por perto. Qualquer coisa eu estarei na cozinha.

Encontrei Esperança conversando com alguns homens. Ela era o meu orgulho e só de olhar para ela me sentia renovada. De uma criança mirrada, ela se tornou uma bela jovem de dezesseis anos, alta como poucas, um corpo bem definido por exercícios e cobiçado por qualquer homem com um mínimo de testosterona e saúde impecável que passou intacta por todas as provações. Sua pele era mais escura que a minha e mais clara que a de Samuel, Cabelos de uma cor castanha mais clara e os olhos eram azuis... Alias a única coisa que parece ter herdado de mim foram os olhos. Todo o resto lembrava Samuel. As feições, alguns gestos e até a personalidade lembravam o que foi o Jovem Samuel para quem o conheceu melhor. Ela era uma inspiração para toda a rede, uma guerreira nata, moldada e criada para ser a sobrevivente ideal para o nosso tempo. Mal sabia ela que era muito mais do que isso.

- Oi mãe.

- Como vão as coisas?

- Tudo bem.

- Acho que não ficará tudo bem em breve.

- Por quê?

- A Gabriela não passa de hoje.

Os outros homens perguntaram quase em uníssono.

- Por quê? Ela Piorou?

- Chamem de Intuição médica...

Confesso que fui um pouco cruel e talvez um pouco precipitada. Mas aquela sensação de desgraça não me deixava. Era como se eu pudesse sentir que a morte estava chegando pelo túnel e logo levaria Gabriela com ela.

- E onde está Samuel?

- Onde deveria estar... E não preciso dizer que ela terá um... Funeral digno certo?

Todos assentiram lentamente.

- Temos outro problema. Os remédios estão acabando.


- Quer que eu vá buscar mais na comunidade mãe? Posso ir amanha de manhã.

- Sim... Na verdade vou armar uma pequena expedição para ir até lá.

- Não precisa mãe. Posso ir sozinha. Tu sabes que não tem problema, todo mundo lá me conhece.

Ela é o meu orgulho... Mas ainda assim uma adolescente. Não pude esconder um sorriso.

- Você se importa se eu for com você? Sei que você é independente e tudo, mas porque isso agora?

- Olha mãe não leva a mal, Mas tem um soldado lá que eu queria conversar sozinha...

Sentei lentamente no banco a sua frente. Ela sabia o que isso significava e eu também. Sei que ela estaria flertando com homens cedo ou tarde como qualquer adolescente... Mas ela não era qualquer adolescente não é mesmo?

- Ah não vem me dar sermão mãe! Eu vou ver como o Samuel está.

- Ah não digo eu... Não foge do assunto Esperança! Volta aqui Garota!

Eu poderia jurar que vi alguns homens rindo da cena, mas na verdade eu estava feliz apesar da minha raiva aparente. Não eram incomuns as discussões entre Esperança e eu. Mas era inegável que estas conversas acaloradas injetavam vida neste lugar. Uma lembrança de uma vida comum em um passado que parecia muito distante. O mesmo passado em que Samuel devia estar pensando agora... Um filme deve estar passando pela cabeça dele desde que Gabriela está no estado terminal. Não conheço nem a metade da história dos dois e na verdade eu não queria saber. Sempre quando ela queria falar do passado eu evitava com uma desculpa e se eu não conseguisse evitar, ficava me remoendo durante e depois dos relatos. Eu tento me convencer que o que eu sinto pelo Samuel é um amor fraternal, amor de anos na batalha pela sobrevivência... Mas o ciúme sempre aparece e meu eterno dilema permanece.

*****

Samuel neste momento está em um dilema mais sério... Ele realmente ficou lá, diante da casca vazia de Gabriela, repassando em sua mente todos os bons momentos e todos os sonhos com ela. Se arrependimento matasse... Mas esperem. Mata sim! Ou pode matar. Na verdade ele via uma solução prática, rápida e simples. Ela estava na mão dele agora... A pistola pesava em sua mão e ele verificou o pente diversas vezes. Havia três balas, mas só precisava de uma. Um movimento e estaria acabado o sofrimento. E se Deus fosse piedoso, o levaria para junto de Gabriela onde passariam a eternidade como um só. Samuel retira uma das balas do pente e guarda no bolso da calça. A morte parecia uma solução simples para muitos dos problemas atualmente... Não vamos culpá-lo por se precaver. Foi em tempo que o fez, pois alguém chegava para terminar com seu momento de solidão.

*****

Esperança sempre foi prática e nunca escondeu seus sentimentos. Mal Samuel abriu a cortina e comprovou que era ela, A filha avançou decidida e abraçou o pai. Eu me mantive distante para não atrapalhar o momento. Ouvi apenas murmúrios de sua conversa, mas era evidente que Esperança foi dar seu apoio ao Samuel. Ela sempre foi muito ligada a ele, o que é óbvio vindo de sentimentos de pai e filha que eram, embora nunca tenhamos dito a ela quem era o pai. Ambos eram guerreiros. Ambos eram sobreviventes de um mundo doente. Eu adorava apenas olhar para os dois conversando, sorrindo, tendo uma relação de amizade forte como tinham.


Era uma preocupação genuína que Esperança expressava naquele momento. Parecia estar incentivando Samuel a reagir o que não estava acontecendo. Geralmente era o bastante, mas agora Samuel estava ainda mais depressivo. Aproximava-me lentamente e olhava para Gabriela que estava deitada e completamente imóvel. De certa forma eu sabia o que tinha acontecido, mas era difícil aceitar... Gabriela finalmente deixava o mundo material e eu rezava para que tenha encontrado o caminho para os céus, o paraíso ao qual tinha direito.

- Eu estou muito preocupada com você.

- Não precisa ficar preocupado comigo... Eu...

Era evidente que Samuel estava definhando em tristeza e não queria fazê-lo na frente da filha. Eu tinha que intervir.

- Esperança, venha. Vamos deixá-lo sozinho.

Eu saí com Esperança do quarto, onde havia algumas pessoas esperando para saber o que acontecia.

- Senhores... Dê um tempo á ele.

Eu olhava uma ultima vez para Samuel e podia quase sentir a tristeza em toda a sua pessoa. Ele ainda não queria acreditar que Gabriela estava morta. Podia ver em seus olhos a incredulidade. Era como se esperasse que Gabriela fosse levantar e falar que tudo não passava de uma piada sem graça. Queria poder ir até ali, abraçá-lo e dizer que nós ainda estávamos ali... Esperança, Victor e Eu. Dizer que ainda havia uma mulher que faria qualquer coisa para fazê-lo se erguer das cinzas e alçar vôo. Que enfrentaria o que fosse ao seu lado... Seja anjos ou demônios ou o maldito Flauros! Mas tudo o que fiz, foi fechar a cortina e esperar que voltasse para nós, como sempre fez.

Samuel teria que voltar logo, pois a realidade não ia esperar seu luto. Algum tempo depois, meus devaneios foram bruscamente interrompidos pelos gritos de alerta de Victor.

- Invasão!

De imediato todos procuraram proteção na barricada ou nos dormitórios protegidos pelas placas de metal. Não era a primeira vez que acontecia, mas era sempre como a primeira vez. O medo e a tensão eram iguais em todas às vezes. Algumas vitórias e derrotas ao longo do caminho são obvias, mas ninguém gosta de perder... E um dos nossos acabava de cair com um tiro na cabeça. Logo que percebi que o homem estava mesmo morto (E ele estava do meu lado, poderia ter sido eu) Busquei proteção para em seguida ir avisar os outros. O sujeito que atirou parecia ser bom, logo ninguém poderia ficar isento de fazer a sua parte. Passei pelo quarto de Samuel e me vendo em estado de alerta logo se prontificou.

- Laura! O que aconteceu?

- Alguém atirou em um dos nossos.

- Droga!

- Foi certeiro, direto na cabeça. Eles não são pouca coisa.

Nesse ínterim apanhava as minhas armas que se resumia aos sabres e o velho revolver que consegui a duras penas manter comigo. Eu preferia não usá-la, afinal eram apenas seis tiros e depois sabe deus quando conseguiria mais balas.

- Cadê o atirador?

- Fora do limite da luz é claro.

Victor ainda procurava alguém nas sombras quando uma pedra foi atirada em nossa direção. Uma mensagem de nossos atacantes. Samuel foi o primeiro que leu.

- Eles querem nossos suprimentos! Avisem todos!

Foi exatamente o que fiz. Tinha que avisar os outros homens e principalmente Esperança. Era difícil aceitar, mas ela é uma guerreira nata. Aprendeu muito bem o que Samuel ensinou a ela e logo seria melhor que todos nós, se é que já não era! Preferia mil vezes levá-la até um local seguro até tudo acabar, mas ela provavelmente jamais me perdoaria. Nada contamos sobre as circunstâncias de seu nascimento e esta realidade era tudo que ela conhecia. Educamo-la para sobreviver e lutar era parte integrante disso... E ela aprendeu bem.

*****
As negociações prosseguiam na frente de batalha. Um homem começava a sair das sombras em direção a entrada. Era um sujeito branco, de cabelo moicano, vestindo uns trajes estranhos feitos de couro... Não era para menos, afinal era feito da pele das criaturas da noite. Um verdadeiro motoqueiro do inferno.

- Quem é o líder?

- Quem quer saber? Gritava um dos nossos que estavam armado com um rifle e apontava ao sujeito.

- Eu quero negociar.

Esta era uma prática comum. Ninguém queria desperdiçar tempo, pessoal, recursos e principalmente balas. Era sempre um grande risco e os negociadores eram figuras tarimbadas nas tribos, principalmente quando se davam bem. Samuel tomou a palavra.

- Baixa essa arma...

- Mas ele matou um dos nossos!

- Baixa essa arma homem! Isso não vai ajudar.

Esse era um momento em que os dois lados estavam se estudando e testando suas formas de intimidar o outro. A guerra de nervos ou psicológica como Laura costuma chamar. Contando vantagens um para o outro, ameaçando... Até aí nenhuma novidade.

- De onde vocês são?

- Sou andarilho. A gente pode sair sem matar vocês. Não queremos desperdiçar munição.

E assim a tensão continuava densa o suficiente para se cortar com uma faca.

*****

Alertei cada um por quem eu passava, dizendo para onde deveriam se dirigir. Logo que cheguei ao quarto, Esperança já estava quase pronta com a sua arma na mão, uma escopeta cano serrado clássica que já vira dias melhores, mas ainda funcionava bem. Filmes como “exterminador do futuro” e “blade runner” passaram rapidamente pela minha mente.

- Pelo visto já sabe do que esta acontecendo.

- Sim. Fica escondida aqui que eu protejo a gente.

- Calma aí... Sou tão guerreira aqui quanto você.

- Eu sei. Só não quero que você se machuque.

- O sentimento é recíproco minha filha...

Logo ela saia do quarto na frente e eu suspirava resignada. Era um fato que sua força era necessária, mas subia um sentimento de pânico toda vez que ela se arriscava. A lembrança do quanto ela é especial e precisamos dela quase escapa aos meus lábios diversas vezes. Mas prometi que ela teria a liberdade de escolher, sem interferência minha ou de Samuel. E por falar nele, Podíamos ouvir sua conversa com o estranho e as negociações seguiam.

- O que você quer?

- Gasolina tu tem?

- Não tem.

- E de onde vem à luz então?

- É só o que temos.

- Então passa o que tem.

Não era segredo que gasolina valia muito e não podíamos ficar sem luz. Seria nossa sentença de morte e depois havia outros usos para o precioso combustível. Isso estava fora de cogitação. Samuel tentava ganhar tempo para avaliar nosso inimigo o que não estava tendo muito sucesso. O homem veio em nossa direção e Victor não estava disposto a permitir.

- Nem mais um passo!

- Eu estou desarmado!

- Que você quer afinal?

- Gasolina... Só gasolina.

- Então vamos ter que conversar com mais calma... E você dá dois passos para trás, agora!

Samuel olhou ao redor e finalmente viu que o circo estava armado. Éramos uns dez ali, prontos para nos defender. Aquela negociação estava fadada a terminar da pior forma. Eu precisei intervir para tentar evitar mais lutos naquele dia.

- Se queria negociar apenas, não deveria ter atirado em um dos nossos... E não na minha frente.

A vida acabou por me ensinar um ou dois métodos de persuasão e a comunidade via a mim como um tipo de matriarca, assim como Viam em Samuel e Victor fortes lideranças... Mas Samuel não desejava liderar e Victor também não... Restava a mim quase sempre que a comunidade pedia um líder. E agora tentava desempenhar esse papel.

- Bom... Você sabe como funciona moça. É para vocês verem que a gente não ta para brincadeira.

- Uma péssima maneira de começar a negociar.

- Então... Posso entrar aí?

- Vocês têm alguma coisa de valor para negociar?

- Quantos vocês têm?

Olhei de relance para Victor. Ele sabia que tínhamos mais ou menos cinco litros de gasolina. E cada gota a menos faria falta. Ele oferece um litro ao estranho que se volta para trás e parece discutir por gestos com alguém.

- Um litro... Tão precisando de que?

- Remédios.

Muito bem Victor... Talvez saíssemos dessa melhor do que esperávamos...

- Vejam que coisa... Eu tenho remédios!

- Então falamos a mesma lingua meu chapa!

Um anão surge das sombras e para ao lado do estranho quando ele assovia. Tira a mochila das costas e abre, revelando o que parecia ser caixas de remédios. Mas é claro que poderia ser qualquer outra coisa.

- Quer vir até aqui?

- Vem você aqui!

O anão começava a vir, mas foi retido pelo outro. Não era burro realmente, mas nós também não. Ele mostrou melhor uma caixa típica de remédio e por um momento meus olhos se iluminaram.

- Encontramos uma farmácia soterrada. Demos sorte não acha?

- Vira a mochila aí para a gente ver.

E não é que da mochila cai varias caixas de diversos remédios? Será que estavam tão necessitados a esse ponto? Se tiver algo tão valioso quanto à gasolina, eram os remédios. Apesar da desconfiança, não poderíamos deixar de pagar para ver. O Homem queria uma caixa por um litro de gasolina... Nestes dias não é um mal negócio, mas precisamos de ambas as coisas... Mas se tivesse pelo menos o remédio daquela menina doente já valeria a pena... Eu pagaria para ver.

Aquilo obviamente foi um erro... Quando vi que as caixinhas estavam vazias era tarde demais... O maldito andarilho me agarrou e começou a me usar como moeda de troca pela gasolina. Há muito tempo que não sentia medo como aquela hora... Toda a vida perigosa que tivemos depois do final dos tempos... Foram poucos os momentos que realmente senti o frio na espinha, como se a morte me espreitasse. Foram momentos tensos até que eles finalmente conseguiram o que queriam. A única notícia boa é que eles não levaram todo o nosso combustível, levando apenas o litro e meio combinado antes. Fora a morte da sentinela e meu orgulho ferido, não houve outras baixas.

Houve uma tentativa de perseguição aos ladrões, mas o rastro acabou na saída do metrô e não seguimos adiante... A noite já havia chegado e nós não éramos loucos ou desesperados o bastante para andar a noite nestes tempos... A noite era a hora deles... Dos condenados a vagar eternamente em busca de carne humana e morte. Um dia estes andarilhos pagariam pela ousadia deles... Nós só podíamos recuar para ver o sol nascer uma vez mais.



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